Texto: Divulgação. Foto: André Burian
A famosa escultura de Iemanjá localizada na Lagoa da Pampulha desde 1982 sofreu muita depredação ao longo dos anos. Em 2007, o Portal da Memória, obra do artista mineiro Jorge dos Anjos, resolveu o problema, ao proteger com uma moldura de ferro a escultura de Iemanjá, ao mesmo tempo em que abriu uma multiplicidade de reflexões sobre a história da cultura de raízes africanas que permeiam a formação de toda a capital mineira. Em uma homenagem a esse processo e à trajetória deste importante artista ouro-pretano, o livro “Portal da Memória: A poética construtiva de Jorge dos Anjos na paisagem da cidade”, será lançado nos próximos dias 2 (sexta-feira) e 3 (sábado) de junho, com duas mesas de debate realizadas na Casa do Baile e no Centro Cultural UFMG. Nos encontros, com entrada gratuita, serão distribuídos exemplares do livro recém-lançado. Jorge dos Anjos tem muitas obras que reverenciam a cultura afro-brasileira e conversam diretamente com Belo Horizonte, mas certamente o Portal da Memória pode ser considerada sua criação mais emblemática na cidade. A imensa escultura de ferro oxidado, marcada por desenhos de símbolos religiosos das matrizes afro-brasileiras, não apenas protege a estátua de bronze de Iemanjá — removida para um pedestal sob a água, evitando o contato do público com a peça, após a instalação do portal na orla — mas apresenta literalmente um convite para reparar outros belos horizontes, neste caso, construídos a partir de um enquadramento de ferro, rígido, de presença imponente, que pode simbolizar o olhar da população negra e suas vivências, lembranças e culturas não raras as vezes amordaçadas e negadas.
Por isso, a Pampulha é tão simbólica. Criada para ser o cartão postal da modernidade de Belo Horizonte na década de 1940, com obras de Oscar Niemeyer e jardins de Burle Marx, a orla da Lagoa da Pampulha, cercada pela Casa do Baile e pelo Iate Tênis Clube, durante muito tempo se manteve como espaço restrito à elite e, consequentemente, negado às pessoas pretas. Nesse sentido, o Portal da Memória foi criado como uma espécie de reparação histórica simbólica e uma lembrança viva aos visitantes de que a cidade e suas belezas não estão determinadas pelo estereótipo burguês do homem branco, ao contrário, são essencialmente resultado da multiplicidade de seu povo, incluindo uma população escravizada por mais de três séculos da história registrada, e empurrada para a margem das periferias brasileiras na chamada “modernidade democrática”.
É contra o apagamento do passado da população preta e o silenciamento contemporâneo das raízes afro-brasileiras que a obra de Jorge dos Anjos ganha força e sentido concreto. “O Portal da Memória é uma das esculturas mais significativas que tenho em BH, em um lugar importante, a Lagoa da Pampulha, em diálogo essencial com a água. Na África, antes de entrar no navio negreiro, costumavam vedar os escravos e andavam em círculo com eles
envolta de uma árvore, que era chamada árvore do esquecimento. Nesse sentido, nessa obra, a água é memória. É como se, ao atravessar o portal, você fosse se lembrando da sua história, sua existência, é uma maneira simbólica de afirmar isso”, explica o artista. “Desenvolvo meu trabalho pensando nas raízes africanas. E sei que a minha arte, a escultura, acaba sendo consumida por pessoas mais ricas. Por isso, é importante a obra estar em um
espaço público, de acesso a todos. Acredito que o lugar público é a vocação da escultura”, complementa Jorge.
A partir deste contexto, o livro apresenta uma série de textos reflexivos, amparados pela robustez da pesquisa acadêmica, mas que parecem convidar o leitor, com linguagem fluida e acessível, para uma boa prosa sobre o patrimônio cultural, a paisagem cotidiana, as diferenças sociais na formação da cidade, a representatividade de Iemanjá dentro de um Brasil majoritariamente negro, tudo isso delineado pela arte de Jorge dos Anjos e pelos
distintos significados que ele alcança com suas esculturas de ferro, surpreendente maleáveis aos olhos. “Na iniciação científica a professora Rita Lages me pediu para escolher um monumento urbano para pesquisar, não tive dúvida de escolher o Portal da Memória, não só pela beleza da escultura, das linhas construtivistas, da geometria sensível, como pelos múltiplos significados que a obra apresenta para a comunidade e das possibilidades de
desenvolvimento da pesquisa na área da preservação do patrimônio Cultural. Quando vimos a quantidade de artigos que havíamos escrito na temática, resolvemos apresentar o projeto do livro na Lei de Incentivo de Belo Horizonte. O Jorge recebeu bem a iniciativa, fez as ilustrações e concedeu uma entrevista para a publicação. Convidamos o Flávio Vignoli, que já havia trabalho com o Jorge no projeto Aya Árvore da Vida no Centro de Referência das Juventudes, para fazer o projeto gráfico. Estamos muito satisfeitas com o resultado” relata Tereza.
O trabalho, realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, é resultado de uma rica pesquisa de Maria Tereza Dantas Moura, conservadora-restauradora e mestre em Patrimônio Cultural pela UFMG, e Rita Lages Rodrigues, historiadora e professora de História e Teoria da Arte da Escola de Belas Artes da UFMG. Em 113 páginas, as duas autoras da obra tecem interpretações assertivas e importantes sobre a arte de Jorge dos Anjos, além de presentear o leitor com uma longa entrevista com o artista. A publicação ainda conta com uma bela coletânea de fotografias em preto e branco das principais obras do artista, distribuídas ao longo de todo o texto.
Jorge dos Anjos
Natural de Ouro Preto (MG), Jorge dos Anjos é artista plástico formado pela Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP), tendo assimilado técnicas e perspectivas com os professores-artistas Nuno Mello, Ana Amélia e Amílcar de Castro. O trabalho de Jorge dos Anjos é nacionalmente e internacionalmente reconhecido pelas originais esculturas produzidas principalmente em chapas de ferro oxidado, mas também em pedra sabão e madeira. Sua arte é marcada por reverências e resgates da cultura africana, caracterizada por dobras, recortes e inclinações improváveis da estrutura rígida, desafiando a natureza principalmente do metal, característica que rendeu a alcunha “balé de silhuetas” para sua obra. Jorge dos Anjos realizou exposições por todo o país, incluindo obras no Museu de Arte Moderna de São Paulo (SP); na Galeria do Banco Central, em Brasília (DF); e no Museu da Inconfidência, em
Ouro Preto (MG); além de incursões pelo exterior, tendo ocupado a Galeria Souza Edelstein, em Nova Iorque, nos Estados Unidos; e uma galeria do Shopping Colombo, em Lisboa, Portugal. Em Belo Horizonte, além do Portal da Memória, instalado na Lagoa da Pampulha, Jorge dos Anjos também assina outra importante obra para a memória afro-brasileira, o monumento Zumbi Liberdade e Resistência — 300 anos, situado na Avenida Brasil.
Seminário de lançamento do livro “Portal da Memória: A poética construtiva de Jorge dos Anjos na paisagem da cidade”
1º dia de lançamento
Quando. 2 de junho (sexta-feira), de 18h30 às 20h
Onde. Centro Cultural UFMG (Avenida Santos Dumont, 174, Centro)
Mesa de conversa com: Regina Helena Alves da Silva, Rita Lages Rodrigues, Maria Tereza Dantas Moura, Carolina Ruoso e Jorge dos Anjos.
2º dia de lançamento
Quando. 3 de junho (sábado), de 11h às 12h
Onde. Casa do Baile – Centro de Referência de Arquitetura, Urbanismo e Design (Avenida Otacílio Negrão de Lima, 751, Pampulha)
Mesa de conversa com: Rita Lages Rodrigues, Maria Tereza Dantas Moura, Carolina Ruoso e Jorge dos Anjos.