Porque um menino nos nasceu,
um filho nos foi dado,
e o governo está sobre os seus ombros.
E ele será chamado
Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso,
Pai Eterno, Príncipe da Paz.
Isaías 9:6
Socorro, há dor nas salinas
Senhores, depressa. Há um imenso grito de dor sobre a alva brancura das salinas. Há homens morrendo sem pão e sem lei. E semi-homens, quase despidos de roupas e de carnes, e crianças que não se podem amamentar nos seios magros e murchos de espectros de mãe. Venham ver, enquanto ainda vivem, os homens que arrastam a negra miséria por sobre a opulência do sal dos caminhos. Venham ver, senhores, os meninos que nunca aprenderam a vestir e que crescem expondo em sua cândida nudez a nossa própria vergonha. Venham ver, senhores, a injustiça solta nas trilhas do sal, nua e crua, sem mistérios nem ministérios. Venham ver a esquálida e tenra menina, que mal desabrocha servindo de pasto aos donos das gentes e das leis, e trocando o casebre de pau-a-pique e a esteira de tábua, pelo colchão de molas da moradia da colina, para depois ir parir um filho sem pai num canto de restinga. Venham todos, venham ver o salário do sal, e venham ver o triste contraste que há entre o barraco de barro à margem da lagoa e a moderna mansão do salineiro que se destaca como um monumento à miséria no alto da colina. E venham ver o imenso ódio que se esconde sob a máscara de humildade do homem machucado e sofrido das salinas da beira-mar. Venham ver uma paz social que fermenta como vinho amargo decomposto na podridão da miséria, da exploração e da injustiça. Eu lhes mostrarei, senhores, onde a lei trabalhista é a vontade única e onipotente do senhor quase-feudal e o amparo previdencial é a migalha atirada pelo dono ao trabalhador moribundo que lhe vendeu suas forças uma vida inteira e miserável. Venham ver um menino mal-crescido puxar o sal do quadro da salina insalubre, por um prato de feijão e farinha. Venham ver, senhores, acudam. Depressa. Eles são o sal da terra.
Fonte: PINHEIRO, Ofir. Socorro, há dor nas salinas. In: PACHECO, Jacy. Paisagens Fluminenses – Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1969, pp.73-74. Publicado originalmente no jornal O Fluminense de 19/02/1968.
Revista Brasil Salineiro
“Os brasileiros precisam imitar a Pedro Álvares Cabral e descobrir o Brasil. Porque o Brasil é um gigante desconhecido para a maioria dos que aqui vivem. (…) Você sabia que na[quela] terra (…) vive um grupo de heróis a lutar diariamente pelo Brasil? Como verdadeiros heróis, aqueles homens não tem um nome. Não se chama Sua Excelência Tal e Tal. Você não encontrará o retrato deles nos jornais. São os operários do parque salineiro (…). Eles produzem no meio dos maiores sacrifícios, quase todo o sal de que a nação precisa”. Para que você compreenda o que é o esforço desses homens é preciso recordar que o sal é um produto da natureza cuja colheita não abrange o ano inteiro. Desta forma, o operário do sal não pode ter uma situação de perfeita estabilidade. Ele trabalha durante seis meses com regularidade, recebendo salário e vivendo com relativa segurança. Mas depois o sal acaba e ele tem que se arranjar como melhor pode até a próxima colheita. Entretanto, a falta de estabilidade não é o único inconveniente na vida do salineiro. Há outros, e bem grandes. Entre estes outros inconvenientes, figura a questão dramática da deformação física. (…) Mas, as dificuldades dos salineiros vão mais longe. O cloreto de sódio e o iodo do sal são tremendos agentes de irritação da pele. Primeiro o operário que trabalha no sal começa a sentir uma comichão, que se vai alastrando pelo corpo todo. Pouco a pouco, formam-se nos lugares que comicham verdadeiras feridas que ardem como se fossem queimaduras. Isso tudo é duro de aguentar. Mas, onde se nota que os salineiros são verdadeiros heróis é no espírito com que enfrentam essa vida difícil.
Fonte: Revista Brasil Salineiro, ano 1 – Novembro, 1953 – nº 2, p. 11. Órgão de divulgação do INS – Instituto Nacional do Sal.
Ó Mãe De Todos Os Sais, amável Rainha Alva do meu esforço, aceita, com benevolência, a oração que te faço: Que tua brancura entre no meu coração e no coração de todos os que te honram com o suor de cada dia. Que todos te amem e sintam o poder da tua intercessão e o fruto de tuas abundantes graças. Conceda que todos os pecadores, aos teus pé, se arrependam e reencontrem a luz, fonte de paz e da verdadeira felicidade. Que também eu a reencontre, hoje e na hora da minha morte.
Ó Rainha Alva, rogai por nós. Amém.
A Escola de Belas Artes da UFMG apresenta
vós sois o sal da terra
exposição de Gabriel Lauriano e curadoria de Luíza Marcolino
Na passagem, Jesus designa ao homem o dever de condimentar a fé, assim como o sal que conserva e tempera os alimentos. Em um giro epistemológico, Gabriel Lauriano encontra nesta sina uma censura contra a própria religião e seus dispositivos: os objetos sagrados, as narrativas bíblicas, os costumes em torno da mesa cristã. Quando o sal de que o povo é feito não é insípido, por outro lado, de tão denso oculta o que é santo, e de tão conservador o corrói.
Podemos pensar também que Gabriel Lauriano, ao mesmo tempo que critica a rigidez religiosa através da materialidade de seu trabalho, explicita por extensão o caráter religioso da arte contemporânea. A santa cristalizada pela humanidade representada no sal é também a santa cristalizada pelo sal sobre um cubo branco: ambas adoradas, embora quase invisíveis. Ambas, começo e fim.
O desconforto que sentimos diante dos trabalhos extrapola a visão, atinge a pele, a língua. É quase um medo da seca, como se o sal ameaçasse sugar a água do corpo do espectador que o contempla. Nas fotomontagens, a imagem do artista se confunde com a dos trabalhadores nas salinas. Em um dos trabalhos, as contas de um terço saem ou entram em um ovo. São proposições que nos falam de uma fé intrincada na experiência do indivíduo, em sobreposição ao que é construído socialmente.
O que vemos de fato? Talvez, apenas o sal.
Luíza Marcolino, 2024
Galeria EBA | UFMG
Visitação de 10 de julho a 27 de julho de 2024.
Vocês são o sal da terra. Mas, se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens. “Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha. Ao contrário, coloca-a no lugar apropriado, e assim ilumina a todos os que estão na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus.
Mateus 5:13-16
Inventário
Revelação
2023
intervenção com sal cristalizado em fotografias de arquivo público.
42 x 42 x 3 cm
o sal da terra
2023
fotomontagem com as fotografias de Wolney Teixeira e Marcel Gautherot.
42 x 42 x 3 cm
Consumação
2023 – 2024
argila, terços, pasta de sal oxidado, copo e jarra de vidro, prato, sal, semente, tinta a óleo, óxido de ferro avermelhado, forro de mesa, resina poliéster, cola branca, medalhinha religiosa, redoma de vidro, gesso e escapulário.
dimensões variáveis
Nossa Senhora do Sal
2024
imagem religiosa, resina poliéster, sal, pasta de sal e redoma de vidro.
12 x 20 x 12 cm
Corrente de Sal
2023
sal, resina poliéster e cerâmica
dimensões variáveis dos grilhões.
comprimento total: 2 m
Coroação
2023
fotoperfomance
Registro: Caio Marqz
Manipulação Digital: Gabriel Lauriano
mini bio
Gabriel Duarte Lauriano é natural de Belo Horizonte/MG e está graduando em Artes Visuais pela UFMG. Seus trabalhos lidam com o reposicionamento dos componentes culturais e simbólicos da sociedade, por meio de esculturas, fotografias, instalações e perfomances. O artista pesquisa os costumes brasileiros, bem como as crenças religiosas e suas respectivas manifestações. Sua produção mobiliza o questionamento acerca de nossos hábitos e tradições, ao passo que, nos instiga com um novo olhar acerca do re-conhecido, encontrando neste, uma nova possiblidade de mudança. Em sua multiplicidade técnica, decodifica sua vivência mineira para assim revelá-la sob uma nova ramificação ideológica; em que o sujeito é quem constrói, modela e refaz o espaço.
instagram: lauriano_art