TARCISIO D´ALMEIDA
Publicado no Jornal OTEMPO em 29/05/2011
Lendo o discurso que proferiu na cerimônia de outorga do título de professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, no ano de 1999, do qual fui espectador e que a revista “Cult” acaba de publicar (n° 157), percebi o compromisso de escrever estas breves linhas para celebrar a memória e o legado de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), nossa primeira pensadora de moda no Brasil.
A moda e sua reflexão intelectual nas arenas acadêmicas brasileiras têm em Gilda seu marco histórico inicial. Seu pioneirismo resultou, no ano de 1950, na defesa da primeira tese de doutorado no país, junto ao Departamento de Sociologia da USP, sob a orientação do antropólogo francês Roger Bastide, intitulada “A Moda no Século XIX” e que teve como objeto de estudo, portanto, a moda da alta costura. Desbravou terrenos e lutou contra preconceitos na academia. O olhar da pesquisadora se debruçou sobre a força estético-criativa da alta-costura, uma vez que, somente dez anos depois, iniciar-se-ia a nova maneira de se criar e produzir desejos no mundo da moda, com o prêt-à-porter.
De maneira que podemos afirmar, com plena certeza, que não houve no Brasil nenhuma pesquisa anterior à de Gilda, ao menos com o rigor do ritual universitário. A oposição a tal afirmação advém da defesa, exatos dois anos antes de Gilda, ou seja, em 1948, do estudo do semiólogo francês Algirdas de Julien Greimas, que submeteu sua tese de doutorado “La Mode en 1830” à Universidade de Paris V, Sorbonne. Mas a pesquisa de Greimas, ainda inédita em língua portuguesa, foi defendida na França e, não, no Brasil.
Coincidentemente, com o intervalo de dois anos, agora mais tarde, a tese de Gilda ganha sua primeira versão impressa pela “Revista do Museu Paulista”, que a publicou na íntegra em 1952. Somente no ano de 1987, ganhou edição em livro, com a adição ao título da expressão “O Espírito das Roupas”, a partir do pensamento proposto pelo escritor Thomas Carlyle, no livro “Sartor Resartus”.
Mas ela não se contentou com seu estudo do doutorado. Em 1995, retomou seu interesse pela moda e publicou, na revista “Novos Estudos Cebrap”, o artigo “Macedo, Alencar, Machado e as Roupas”, sobre a presença e a descrição de vestimentas em personagens nas obras desses três escritores da nossa literatura.
Com Gilda, aprendemos a perceber e pensar as sensibilidades, sutilezas e entrelinhas da moda com outras áreas, como a literatura, a fotografia, as artes plásticas e a estética, por exemplo. Os relatos de costumes observados por escritores no fim do século XIX, os quadros de pintores e as gravuras de moda são ricos e nos ajudam a compreender, através das crônicas e romances das revistas e jornais da época, estilos, comportamentos e atitudes nas constituições das sociedades.
Essas observações estavam muito bem esquadrinhadas quando Gilda se predispôs a pesquisar o tema e direcionou seu olhar intelectual sobre o entendimento da “Moda como Arte”, “O Antagonismo”, entre vestimentas para mulheres e homens, “A Cultura Feminina”, “A Luta das Classes”, “O Mito da Borralheira”, e também sobre “O Gesto, a Atitude, a Roupa” (como títulos para os capítulos de sua tese).
A partir dela, começou a se esboçar o embrião para o que compreendemos, na atualidade, como comunidade de pesquisadores brasileiros de moda. E é graças a ela que atualmente podemos assistir a um crescente interesse pelo consumo intelectual de moda no Brasil, que se expande a cada década, e de uma geração histórica pós-Gilda, com suas produções que versam e aplicam seus instrumentais teóricos na análise e reflexão da moda.
Tarcisio D´Almeida é professor e pesquisador do curso design de moda da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG). Ele divide este espaço com Susanna Kahls e Jack Bianchi.