A tradição medieval dos manuscritos ornados – com pinturas e caligrafia caprichada, entre outros elementos – manteve-se com força no século 18 em Portugal e no Brasil, mesmo passado longo tempo do advento da imprensa. Documentos produzidos dessa forma conferiam distinção e, portanto, eram mais eficientes do ponto de vista da comunicação e tinham mais chances de serem preservados.
Para entender como se produziam, usavam e preservavam esses manuscritos, a professora Márcia Almada, da Escola de Belas-Artes, percorreu arquivos e bibliotecas de Brasil, Portugal e Espanha. O trabalho resultou na tese Das artes da pena e do pincel: caligrafia e pintura em manuscritos no século XVIII, defendida em 2011, e vencedora do Prêmio Capes de Tese da área de História. A solenidade de premiação será na próxima quinta, 13, em Brasília.
A partir do Tratado de caligrafia, publicado por Manoel de Andrade de Figueiredo em 1722, em Portugal, a pesquisadora buscou as referências para o trabalho dos profissionais da atividade escrita. “Cheguei então aos espanhóis, porque havia estreita ligação entre a caligrafia espanhola e a portuguesa, devido, em grande parte, ao bilinguismo que reinava na Península Ibérica”, conta Márcia Almada.
Ela acrescenta que na Espanha há grande quantidade de estudos que traçam as redes sociais de escrivães e calígrafos. Um grupo principal atuava em forte proximidade à Corte, e muitos eram amigos de Velásquez, Calderón de la Barca e Lope de Vega. Em Portugal, Manoel de Figueiredo ensinava a filhos de fidalgos e também frequentava os círculos do poder. Isso mostra, segundo Marcia, a importância da escrita adornada para a distinção social.
“Além desses calígrafos de elite, havia uma enormidade de outros profissionais que não se destacaram. E eles atendiam a uma demanda que não era apenas de grupos sociais mais favorecidos. A clientela incluía grupos de negros – escravos ou libertos – e pardos. Pessoas iletradas também valorizavam os manuscritos adornados”, salienta a professora do curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis.
Compromissos de irmandades
Para delimitar o universo de suas pesquisas, Marcia Almada escolheu os chamados “compromissos de irmandades”, estatutos de organizações que regiam a vida social e religiosa de grupos diversos. Os estudos mais aprofundados sobre os documentos levaram à categorização de três estilos principais encontrados nos manuscritos produzidos sob encomenda das irmandades de Minas Gerais, na primeira metade do século 18.
Outra forma de concentrar a investigação foi a opção pela análise dos trabalhos do calígrafo tratado na tese como “o calígrafo/pintor de Vila Rica” – como a maioria dos trabalhos não era assinada, os pesquisadores recorrem a formas alternativas para identificar os profissionais. A escolha foi motivada, entre outros fatores, pelo fato de que um manuscrito desse calígrafo, datado de 1725, revela forte influência do tratado de caligrafia de Manoel de Figueiredo, publicado apenas três anos antes.
“Isso me intrigou, porque esse intervalo era curto, na época, para que um profissional tivesse acesso, em Minas Gerais, a uma obra editada em Portugal. Ainda pretendo descobrir como ele tomou conhecimento do tratado, se teria encomendado um exemplar em Lisboa, ou mesmo se, na verdade, o pintor de Vila Rica teria sido português, recém-chegado ao Brasil”, explica Márcia. Ela conta também que encontrou em Portugal um outro manuscrito do mesmo autor realizado no mesmo ano de 1725, o que foi especialmente valioso para suas pesquisas. “Quase chorei quando descobri o documento”, ela diz. Em trabalhos realizados nove anos depois, “foi possível perceber o aprimoramento técnico, embora ele ainda usasse os mesmos padrões na caligrafia e nas pinturas.”
‘Agentes iletrados da escrita’
A pesquisa de Marcia Almada proporcionou uma série de descobertas relacionadas ao processo de produção dos manuscritos. A análise dos textos revelou, por exemplo, as diferenças com relação à grafia das palavras. “Era uma época de normatização do idioma, que viria a se consolidar no final do século 18, com as políticas educativas de Marquês de Pombal, e várias formas de escrever ainda eram aceitas. O ensino, incluindo os materiais, não tinha uniformidade”, explica a pesquisadora.
Márcia comenta também que não era preciso saber ler e escrever para trabalhar como calígrafo, e os próprios manuais previam que bastava saber desenhar. “Esses profissionais eram os agentes iletrados da escrita, que denominei ‘desenhistas iletrados’. Os manuais recomendavam que se usassem moldes e se recorresse a uma pessoa letrada para conferir o resultado final”, diz Marcia Almada.
A partir de 1761, ela conta, os documentos das irmandades seguiam para Lisboa, para aprovação dos órgãos administrativos, como o Conselho Ultramarino, que se encarregava dos domínios coloniais. Trabalhos bem executados, com capitulares bem desenhadas e tinta de boa qualidade, mostravam capacidade operativa das irmandades. “O prestígio conferido por um documento adornado corresponde à forte valorização, pela sociedade setecentista, da visualidade, como comprovam as igrejas, os cortejos e os monumentos efêmeros”, destaca Marcia Almada. Com bolsas da Fapemig e da Capes, ela pesquisou em instituições portuguesas como a Biblioteca Nacional de Lisboa, a Torre do Tombo – que guardam documentos da biblioteca real –, o Arquivo Histórico Ultramarino e a Universidade de Coimbra. Na Espanha, visitou a Biblioteca Nacional e a Biblioteca da Residência de Estudiantes, que guarda o acervo do antigo museu pedagógico e conserva uma coleção consistente de manuais de caligrafia, impressos e manuscritos. No Brasil, explorou sobretudo estantes e armários do Arquivo Público Mineiro e dos arquivos eclesiásticos de Ouro Preto, Mariana e São João del-Rey.
Múltiplos suportes
Entre os aspectos que garantem o caráter inovador da tese de Marcia Almada, ela ressalta a exploração dos compromissos de irmandades, que haviam sido mais estudados por historiadores, privilegiando o aspecto textual, e a metodologia que lança mão de suportes múltiplos do conhecimento, como a história cultural, a história da arte, a paleografia e história material.
Ela considera que dispõe hoje de um inventário muito relevante do repertório estético dos calígrafos que trabalhavam no Brasil, especialmente em Minas Gerais. E que esse material pode servir de ponto de partida para uma série de outros estudos, da análise química dos pigmentos à trajetória da cultura visual daqueles profissionais. “Ainda há muito o que estudar”, diz Marcia Almada, que ainda não definiu o caminho das investigações do pós-doutorado que será financiado pelo Prêmio Capes de Tese.
Tese: Das artes da pena e do pincel: caligrafia e pintura em manuscritos no século XVIII
De Márcia Almada
Orientadora: Júnia Ferreira Furtado
Defesa em 15 de julho de 2011
Programa de Pós-graduação em História
(Itamar Rigueira Jr.)
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Assim que disponível em formato digital, divulgaremos aqui o link para a obra!
-19.863204-43.959736