Este blog tem como objetivo divulgar o acervo da Coleção Livro de Artista da Universidade Federal de Minas Gerais, a primeira coleção em uma biblioteca de universidade pública no Brasil. Em atividade desde novembro de 2009, o acervo possui mais de 1.500 livros de artista, além de obras de referência, revistas especializadas e revistas de artista. Atualmente este é o maior acervo público de livros de artista da América Latina.
Durante o verão de 2016, a convite do município de Saint-Briac sur Mer e Frac Bretagne, o artista Hervé Beurel oferece uma obra pensada especificamente para o Festival d’Art. No jardim do Presbitério, 100 títulos de obras – o mais antigo de 1870, o mais recente de 2015 – aparecem em cartéis museológicos, eles próprios presos em escrivaninhas que evocam os usados na horticultura para indicar nomes de plantas. O conjunto forma uma instalação abstrata e muito concreta, cada título referindo-se a um local específico de Saint-Briac. Na verdade, Hervé Beurel se interessou por Saint-Briac como um lugar popular para artistas desde meados do século XX e como tema de muitas obras: pinturas, aquarelas, gravuras. Estes agora estão espalhados, pertencem a museus, coleções particulares ou até desapareceram. No entanto, eles permanecem na memória, também estão acessíveis como uma “coleção” na Internet onde o artista colecionou um grande número de seus títulos. Como um longo poema, esta lista evoca alusiva ou precisamente a topografia, as localidades, as periferias rurais da cidade, as praias e as pontas que se projetam para o mar. A partir destes dois dados, títulos de obras e pontos de vista, Hervé Beurel desenhou um dispositivo que, a partir do jardim do Presbitério, convida os visitantes a seguirem os dos artistas, esquecidos ou famosos, a redescobrir o lugar exato onde eles uma vez colocaram seus cavaletes para pintar o motivo. Para apoiar essa pesquisa, o artista oferece uma cartilha que, como um guia turístico, relaciona cada um dos locais. Assim, todos são incentivados a encontrar os locais escolhidos pelos artistas, a vivenciar a arte, desde a paisagem ao pitoresco.
Em novembro de 2008, dei início a um blog – esparso, lento, ocasional. Via-o como extensão pública do ateliê. Pensava-o sem leitores, a não ser por uma amiga francesa, tão querida quanto distante, que vivia então na Nova Caledônia.
Em abril de 2009, ao acessar o blog, encontrei um comentário sobre um texto que eu havia publicado sobre meu pai. Dias depois, a mesma pessoa retornou. Deixou outros dois comentários. Conversamos sobre poesia (Paul Celan, Yehuda Amichai), barcos em mares que não existem, xales de oração, vestidos que se animam com o vento, djellabas. Brinquei que assim talvez passasse a levar meu suposto blog a sério. Dia sim, dia não, passei a visitá-la também e ver o que escrevia em Saudades de um punhal, seu blog mantido com regularidade, cujo título fazia alusão a um conto de Robert Walser (“Sehnsucht nach einem Dolch”, 1917).
Certo dia, ao visitar seu blog, não encontrei nenhuma nova postagem, mas um comentário trazia a notícia de sua morte, ocorrida em São Paulo, em uma madrugada fria de sábado, 30 de maio de 2009. Não sei mais o que se passava no mundo naquele dia, mas em minha agenda, encontrei a anotação: “abrir avenidas pela casa”.
Penso ainda nesse encontro, cuja duração foi a de um fósforo que se acende e se apaga. Nos esbarramos em uma calçada, enquanto seguíamos em direções opostas na multidão. Ela deixou deixa cair um objeto. Eu o recolho, quero devolvê-lo, ainda corro em sua direção, tento localizar seu vulto de costas (é assim que ela se mostra em seu perfil on line). Procuro decifrar a fricção desse encontro feito apenas de escrita, reter o objeto deixado para trás. Guardo a lembrança de sua última postagem, que descrevia um percurso de alguém arduamente treinado em inconstâncias, uma fuga-em-abismo por entre estações de metrô e linhas de ônibus, cujo ponto de chegada era o link para um outro blog.
Entre outras características, ela se identificava como “chronically melancholic, great cook, obsessed with psychoanalysis and detective novels, lazy in the mornings and sarcastic at nights”. Tinha trinta e dois anos.
Neste livro, retomo a promessa feita em uma publicação de 2014: a de recolher e editar vestígios da escrita de Carol D’Utra Vaz na internet. Com o desaparecimento de seu blog, recolhi algumas de suas postagens no Facebook e, em menor número no Twitter, onde não estivemos em contato, pois em 2009, eu não estava em nenhuma rede social..
Percebo que há uma gradação em sua escrita praticada nos diferentes meios em que esteve atuante: no blog, as postagens oscilavam entre o comentário, o ensaio breve e o poema em prosa, se me lembro bem. No Facebook, ela faz pouco uso de imagens e aproveita a forma como seu nome aparece na plataforma, integrando-o muitas vezes como sujeito de suas frases – brevíssimas e confessionais – em que a angústia extrema e o humor são inseparáveis (feliz & sangrando, escreve em 26 de abril). No Twitter, sua voz vai vai-se tornando espessa, escura, náufraga.
Volver, volver, volver, repete em 27 de março, antes de se entregar aos oráculos do Facebook. Que bruja eres? Which Shakespearean character would you be? Which philosopher are you? Em abril, pensa em comprar um cadeado de diamantes, cantarola Sinatra, devaneia, procrastina, se apaixona pelo Pior Homem do Mundo, e, quando a insônia permite, sonha, sonha muito (com ouriços do mar, com palavras cruzadas ou em alemão).
Se quase todos os links compartilhados em suas postagens se tornaram indisponíveis, a intertextualidade ativada pelos fragmentos que compartilhou segue viva. Cita com paixão: Herbert Helder, Sylvia Plath, Pessoa e, claro, Paul Celan, que é o nome de seu gato “miador”. “Só Celan salva”, escreve.
Em 17 de maio, compartilha um anúncio de alguém em busca de companhia para viajar no tempo (sem garantias, adverte o anunciante.) Minha aposta é que ela não escolheria o passado. O vetor temporal do que lança na rede é mesmo o futuro. Em 24 de fevereiro, anuncia uma casa nova, em 24 de maio canta “tengo um un nuevo amor”. Havia uma pesquisa de mestrado no horizonte. Havia horizonte.
E resta uma voz, uma escrita tênue, embrionária, decididamente polifônica, ávida por interlocução, cujos vestígios reúno aqui. Sigo a cronologia de suas publicações, todas realizadas entre fevereiro e maio de 2009. Admiro sua concisão em tempos tão prolixos, sua auto-ironia e, sobretudo, sua necessidade de poesia, cinema e música, elementos que lhe eram vitais como o ar.
Em diálogo oblíquo com sua escrita na rede, ofereço meus cadernos, alguns guardados desde o final da década de 1980. São objetos da intimidade, ensimesmados talvez. Ao contrário das postagens nas redes sociais, não foram feitos para ser compartilhados, senão como a imagem do que se esconde, do que se perde, do que é em vão.